Artigo de Cyro de Mattos em homenagem a Salvador
SALVADOR
Por Cyro de Mattos
Ainda não consigo encontrar-me em tantas avenidas, viadutos e túneis. Não consigo entender-me animal tão veloz. No metrô tudo acontece no abrir e fechar de olhos, de tão rápido. Viadutos e túneis deixam-me assustado. À noite, como acontecia antigamente, já não vou a pé do Terreiro de Jesus até o Jardim da Piedade. É perigoso andar no Terreiro de Jesus até durante o dia. Não é preciso ser velho para que de repente ali alguém leve a sua bolsa, celular ou relógio.
Nessa manhã de verão, ao passar pela Avenida Angélica, de intenso movimento agora, pergunto-me por onde anda a moça que acenava da janela ao moço chegado do interior há pouco tempo. Livros e cadernos na mão, o estudante passava compenetrado na praça, rumo ao Colégio da Bahia. Quando voltava do colégio, os pombos na praça da Piedade vinham comer em sua mão. Vejo então que os pombos foram banidos do calendário. Não mais ao largo.
Cidade de todos os cheiros e magias, o verão seduzia-me em teu sensual tremor de curvas. Nas festas de rua, ó bem-amada marinha, quantas vezes tuas ondas de forte azul rasgaram ao sol meus pulsos, levando-me tonto por todos os cantos? Ao sabor de verões nunca soube de atropelos e desenganos. Desatando teus mistérios no terreiro, viajei em tua noite escorrida como uma canção quente e pura. Senti tua poesia negra entoada por vozes vindas da África. No sono das igrejas, nos casarões solenes, nos velhos sobrados, o teu respirar é gesto que se faz distante, calor hoje impossível de tocar a minha pele, pois a noite deixou de ser criança.
Adorável mão cotidiana, desfeita nos dias atuais, ao azul de cima meus olhos te encontram no risco, uma ideia toda de pedra os espigões na paisagem com as suas manhãs duras. Assim te encontro no alto, repetindo sempre sem remorso esse nó cego na infância.
É verdade que ninguém conhece mais ninguém, seja na Rua Chile, por onde toda cidade passava na semana, ou até na Fonte Nova, quando é domingo de Bahia e Vitória. Disse-me o motorista de táxi que o shopping center é o local ideal para se fazer compras. Lá você encontra o que quiser para comprar, o local é muito seguro e tudo funciona de maneira perfeita. Só não encontra pessoas conhecidas, como ocorria na Rua Chile.
Na guerra diária da vida, agora são milhões de habitantes, cidade, que passam por teu corpo em incessante movimento. Nem sei como teu povo consegue o milagre de ter o rosto alegre e fazer da vida uma festa. A noite chega com inúmeras luzes nos bairros populares, anuncio de néon nas lojas. E, na madrugada puxada de roxo pela cauda, há um sol aracnídeo que descobre lixo nas encostas, terra que desmorona e engole as casas com alguns viventes desprotegidos.
Mal surgem os primeiros raios, na passarela fica o suor dos que lutam com a manhã. Galopas como num campo de traumas e em gritos apertas a minha alma. Eis a vida que prossegue como se fosse uma coisa vã, em teu rotineiro mundo buzinas na arena disparada.
No passeio não há tempo para a conversa inesperada e amistosa. O semáforo indica o sinal verde para que as pessoas atravessem a rua depressa. Com um medo rude de caçadas, mais um de teus anos segue veloz nas avenidas, ladeiras e ruas. De todos os santos com mágoa.
Crédito ilustração: Pedro Henrique Mattos
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