Os soldados baianos na Guerra de Canudos. Confira o artigo de Marcos Roberto Brito dos Santos
- IGHB Bahia
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OS SOLDADOS BAIANOS NA GUERRA DE CANUDOS (I):
A BANDEIRA QUE PERTENCEU AO5º CORPO DE POLÍCIA
Prof. Marcos Roberto Brito dos Santos
O historiador vocacionado é antes de tudo um curioso por desvendar acontecimentos históricos e seus possíveis encadeamentos. Certamente a prática de seu ofício implica muitas operações mentais e materiais, mas me parece fato que duas de suas principais atividades podem ser comparadas, por analogia, ao trabalho do detetive, que a partir de uma pista inicial vai seguindo “os fios e os rastros”deixados pelo passado, investigando mais e mais, ao tempo em que, paralelamente, como uma criança diante de um quebra-cabeça, vai juntando as peças encontradas até chegar a um quadro interpretativo plausível.
Este artigo nasceu assim, como fruto de uma curiosidade e destas atividades. Em meio às minhas pesquisas sobre a Guerra de Canudos, deparei-me, em certo momento, com oexcerto de uma relatório apresentado pelo então governador da Bahia Antonio Ferrão Moniz de Aragão no ano de 1918, onde se noticiava:
“Sob a dedicada e competente direcção do Dr. Borges de Barros, vai o nosso Archivo Publico continuamente prosperando. O seu digno director não poupa esforços para enriquecel-o dia a dia de valiosas acquisições. O anno passado foi inaugurado o Museu do Archivo, com a entrada, em cerimonia solenne, da lendaria bandeira do 5º Corpo de Policia da Bahia, que combateu em Canudos (…)”.
Foi a primeira vez que vi uma referência a este objeto. Guardei a informação, ainda que me inquietasse uma pergunta quase automática: estaria esta bandeira ainda sob a guarda do Arquivo Público do Estado da Bahia (APEB)? Algum tempo se passou, em virtude de outras prioridades de pesquisa, para que eu entrassem em contato com esta instituição, que então me participou que o acervo do seu antigo museu, não mais existente, foi incorporado ao patrimônio do Museu de Arte da Bahia (MAB). Solicitado informação a este último, foi consultado o inventário de sua coleção de bandeiras, chegando ao objeto de código 31.41, que trazia a descrição: “Bandeira do 5º Corpo de Polícia que combateu na Campanha de Canudos”, feita “em damasco e seda”.
Antes da verificação na reserva técnica, uma informação dada pelo MAB, contudo, causou certa apreensão: alguns dos objetos vindos do antigo acervo do Arquivo Público não chegou em boa conservação e poderia ser que a bandeira não tivesse sobrevivido a ação deletéria do tempo. Feito as buscas pela museóloga, tivemos como boa notícia o fato da bandeira ter sido encontrada; entretanto, ela já estava em estado bastante avançado de deterioração. Também, para nossa surpresa, diferente do que esperávamos, pois assim me fez crer a noticia acima transcrita e mesmo o registro no inventário do MAB, não se tratava de uma bandeira do 5º Corpo de Polícia da Bahia, representação simbólica da corporação, mas sim de uma bandeira do Brasil, que pertenceu a este agrupamento militar.
Por outro lado, busquei na bibliografia e em fontes históricas relativas ao tema por mais informações sobre a origem da bandeira pertencente ao 5º Corpo, encontrando no Histórico do Comitê Patriótico da Bahia, de Lélis Piedade, uma referência a bandeiras presenteadas por esta entidade como ato de gratidãoaos destacamentos baianos que combateram na Guerra de Canudos. Inicialmente, na ata da sessão de 16 de dezembro de 1897, se fala sobre ofertas que seriam feitas somente às tropas do 3º Distrito Militar do Exército na Bahia. Vejamos: “Os Srs. Wagner e Fernando Koch lembram a idéia de uma prova de admiração por parte do Comitê aos 9º e 16º batalhões, que regressaram de Canudos, onde se bateram como bravos, e não foram como os demais batalhões, recebidos pelo Comitê com certos auxílios (…)”. Na sessão seguinte, de 20 do mesmo mês, a ideia da dádiva é estendido ao 5º Corpo: “tomaram-se mais diversas resoluções, entre as quais a de oferecer-se também ao 5º batalhão de policia uma bandeira nova, em nome da Bahia”.
Na sessão de 27 de janeiro de 1898, é apresentada as contas das bandeiras, sendo que o balancete contábil do Comitê informa que as bandeiras custaram a esta entidade 2 contos e 900 réis (2:900$000). Nesta mesma sessão, o presidente do Comitê, Franz Wagner “suscita a questão da entrega das bandeiras, resolvendo-se depois de ligeira discussão, fazer-se a entrega com a máxima simplicidade, isto é, fazendo-se acompanhar cada bandeira de um ofício em nome do Comitê”.
A entrega das bandeiras se realiza, entretanto, “com a máxima solenidade”, em 24 de fevereiro de 1898, ocorrida no Salão do Paço Municipal de Salvador, com a presença de membros do Comitê Patriótico da Bahia, do governador Luiz Vianna, do intendente da capital Francisco de Paula Guimarães, de conselheiros municipais, funcionários públicos, oficiais dos batalhões homenageados, representantes do clero e povo em geral.
No discurso de abertura da sessão de entrega, o secretário do Comitê, Lélis Piedade, afirma que o agradecimento da Bahia aos destacamentos do Estado “vem perpetuar-se agora nas bandeiras que lhes vai entregar, bandeiras compradas com o dinheiro da Paz e do Amor, cobertas de beijos e de bençãos (...)”. E mais a frente: “bandeiras, bordadas pela mão da mulher baiana, que vos agradece, heróis, a paz, a serenidade que lhe restituístes”.
A hipótese preliminar que surgiu neste momento da pesquisa era que a bandeira sob a custódia do MAB seria esta mesma ofertada pelo Comitê Patriótico, constante em suas atas de reuniões. Entretanto, com o avanço das investigações esta hipótese caiu por terra. Uma menção em um artigo da revista Bahia Illustrada, de junho de 1920, indica mais distinta importância histórica da bandeira que hoje ainda se encontra sob a tutela do MAB: teria, segundo Silio Boccanera, a bandeira, sido fincada em solo histórico sagrado, o arraial de Canudos, o Belo Monte de Antônio Conselheiro, embora já em escombros. Após enumerar entre as bandeiras históricas depositadas no Museu do Arquivo, “a que pertenceu ao extincto e denodado 5º corpo de infantaria da Brigada Policial da Bahia, que marchou para Canudos, na 4ª expedição”, ajuíza o citado autor do artigo sobre o objeto museológico em questão: “É uma gloriosa bandeira, que tremulou, triumphante, naquella cidadella, no dia da grande victoria final” .
Acreditamos que possa ser, inclusive, a mesma bandeira referida pelo General Arthur Oscar, comandante da 4ª Expedição Militar, em seu Relatório ao Marechal Machado Bittencout, ministro da Guerra, quando descreve os momentos finais do conflito da seguinte forma:
“Às 7 ½ da manhã, sendo mandado tocar 5º Corpo de Polícia da Bahia, avançar, este tomou a posição, que lhe foi indicada à retaguarda da igreja nova, e reforçado depois com o 1º do Estado do Pará, firmaram esta posição, tendo sido às 11 horas colocada a bandeira da república nas ruínas da mencionada igreja, tocando as bandas de música o hino nacional, seguidas pela marcha de continência das cornetas, tambores e clarins, e saudada pelo estampido dos canhões e gritos de entusiasmo que acompanharam as cargas a baioneta, e de calorosos vivas à república”.
Este entendimento, de que a bandeira que se tornou peça do Museu do Arquivo foi aquela trazida pelos soldados do 5º corpo de Polícia da Bahia, de Canudos, e não a presenteada pelo Comitê Patriótico, é reforçada por um estudioso da Polícia Baiana, o major Oséas Moreira de Araújo, que em seu livro “Notícias sobre a Polícia Militar da Bahia no século XIX” afirma: “Chegou o 5º Corpo da Campanha de Canudos, no dia 14 de outubro de 1897, sendo recebido festivamente. A Associação Comercial mandou uma comissão na gare da Estrada de Ferro entregar-lhe uma bandeira, em substituição à sua, que foi recolhida ao Museu do Estado, onde se acha”.
O5º Corpo de Polícia da Bahia não era uma milícia regular da Polícia Baiana, tendo sido formado em meio à Guerra de Canudos, juntamente com o 4º Corpo, como tropa de emergência diante dos insucessos do governo brasileiro nas três primeiras expedições militares contra o Belo Monte. Continuou a existir ainda durante alguns poucos anos, muito mais devido ao seu prestígio, do que a necessidade administrativa da Polícia Baiana em manter cinco corpos em sua estrutura. No início do século XX, entretanto, é definitivamente extinto. Foi se dissolvendo aos poucos, em virtude da ação devastadora do tempo, que a tudo desvanece. Não teve melhor sorte a bandeira que lhe pertenceu, hoje em estado adiantado de desintegração.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS E FONTES HISTÓRICAS
AMORIM, Deolindo. O 5º de Policia da Bahia na Campanha de Canudos. Revista do IGHB. nº 72, Salvador: IGHB, 1945.
ARAGÃO, Antonio Ferrão Moniz de (Governador do Estado). Mensagem apresentada à Assembleia Geral Legislativa do Estado da Bahia. Salvador: Imprensa Official do Estado, 1918.
ARAÚJO, Oséas Moreira de (major).Notícias sobre a Polícia Militar da Bahia no século XIX. Salvador: Polícia Militar da Bahia, 1997.
BOCCANERA JUNIOR, Silio. O Archivo Publico da Bahia: Commemorando (1820-1920): Fundação. Bahia Illustrada, nº 31, Anno IV, junho de 1920.
CIDADE DO SALVADOR (jornal), edição nº 348, de 25 de fevereiro de 1898.
MILTON, Aristides. A Campanha de Canudos. Brasília: Senado Federal, 2003.
MUSEU DE ARTE DA BAHIA. Bandeira do 5º Corpo de Polícia que combateu na Campanha de Canudos, em damasco e seda (objeto museológico). Salvador: MAB, 2024.
PIEDADE, Lélis; OLAVO, Antonio. Histórico e Relatório do Comitê Patriótico da Bahia (1897-1901). Salvador: Portifolium, 2002.
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